Ricardo Shimosakai: porta-voz e referência em acessibilidade e inclusão

Ricardo Shimosakai figura entre nomes importantes em um tema bastante em alta nos dias atuais: acessibilidade e inclusão social. Autoridade e conhecimento ele tem de sobra para falar sobre o assunto, pois ficou paraplégico em 2001, após levar um tiro durante sequestro relâmpago em São Paulo. O trauma foi grande, claro. Mas, após vivenciar um período curtíssimo de sentimentos não tão positivos, deu uma baita guinada na vida.

Ao Nippon Já, Shimosakai contou detalhes sobre o dia que mudou sua vida ao ser vítima de criminosos, além de detalhar o processo que percorreu para, hoje, ser uma voz ativa na questão de acessibilidade.  “Eu consegui ter uma boa aceitação da minha situação. Foi ainda no hospital, quando ainda estava internado e logo tive consciência de que ficar triste e chorar, não ia me curar’”, define ele, que já palestrou em mais de 250 eventos ao redor de 20 países. Com estudos, dedicação e foco, hoje é professor em cursos de graduação, pós-graduação, MBA e especializações. Por ele, já passaram nada menos do que 100 mil alunos.

Durante o bate-papo, realizado em um café acessível no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, Shimosakai deu diversas dicas sobre o que fazer (e não fazer) diante de uma situação que envolva pessoas com deficiência, lembrou de fatos um tanto desconfortáveis pelas quais já passou, mas em nenhum momento perdeu o bom humor. E lembra que a vida é uma grande busca incansável pela felicidade. “Claro que a vida não vem só coisas boas, mas é aprender aproveitar as coisas ruins, ela tem ensinamentos. Na verdade, acho que a gente aprende mais com as coisas ruins do que com coisas boas. É você tirar do fato ruim o que ela tem para te ensinar”, conclui. Confira:

Como foi que você adquiriu sua deficiência?

Eu levei um tiro em um sequestro relâmpago. Eu tinha acabado de voltar do Japão no dia 28 de fevereiro de 2001. Alguns dias depois, fui visitar meus colegas que trabalhavam no aeroporto de Congonhas. Eu estava vestido de terno, carregando pasta… Naquela época as viagens de avião ainda não eram tão acessíveis quanto hoje, então digamos que era mais elitizado. E por isso lá era um lugar perigoso, ladrões ficavam de olho. Era de noite, eles me escolheram e me botaram em um carro, estavam me levando para um caixa eletrônico. Mas antes de ir para o Japão eu tinha fechado todas as minhas contas bancárias e só tinha dado tempo de eu reabri-las desde que tinha voltado, não tinha feito nenhum depósito ainda. Durante o percurso, fiquei pensando no que poderiam fazer comigo quando chegassem no caixa eletrônico e descobrissem que não teria dinheiro para retirar, poderiam ficar com raiva e me matar. ‘Vou fugir agora’ foi o que pensei e saí do carro quando paramos em um semáforo. Eles atiraram e fui atingido. Antes disso, eu nunca tive contato com deficientes. Na família, no colégio, no trabalho, amigos, ninguém. Não conhecia esse mundo. Daí tive que aprender.

Eu consegui ter uma boa aceitação da minha situação. Foi ainda no hospital, quando ainda estava internado. Logo tive consciência de que ficar triste e chorar, não ia me curar. Então não vale a pena ficar lamentando. Então foi aceitar e pensar “se é assim que vou ficar, como posso ser feliz desse jeito?”.

Desde que você ficou sabendo do médico que não poderia mais se movimentar como antes, já conseguiu ter esse pensamento?

Sim. Então digamos assim que deu para economizar muito tempo aí. Porque tem gente que fica anos se lamentando, na tristeza, na depressão… Isso atrapalha muito. E a gente não sabe do futuro, não sabe o que vai acontecer. Não sei se eu vou estar aqui amanhã, assim como nunca pensei que isso fosse acontecer comigo, então eu vou viver no presente, com mais intensidade. Aí começaram a vir mais felicidades e coisas boas. Claro que a vida não vem só coisas boas, mas é aprender a aproveitar as coisas ruins, ela tem ensinamentos. Na verdade, acho que a gente aprende mais com as coisas ruins do que com coisas boas. É você tirar da coisa ruim o que ela tem para te ensinar e o que atrapalhar da sua vida você esquece! É tipo fazer uma reciclagem da mente. Pega aquilo que você pode reaproveitar, você transforma em alguma coisa útil para a sua vida, e aquilo que você não pode fazer nada, você descarta.

E a sua família, como foi a reação e a aceitação delas?

A minha família acho que tentaram passar tranquilidade, mas não sei por dentro como foi exatamente. Isso foi bom, porque se a família ficasse triste… Imagina, a mãe chorando toda hora… Passaria essa tristeza para mim também. Acho que para eles [família] também foi mais fácil porque viram que eu estava bem. A dificuldade não foi muito da parte psicológica. Mas aprender a andar de cadeira de rodas, fazer as coisas… 

E em relação ao convívio com os amigos, sentiu alguma diferença de tratamento? Teve algum amigo que acabou se afastando?

Não por causa da deficiência. Até porque o pessoal que vinha me visitar, via que eu não estava com problemas. Mas talvez porque teriam que passar por alguns trabalhos a mais, por exemplo, se me chamassem para comer em um restaurante e tiver degrau para poder entrar. Então as pessoas não se afastaram de mim por causa da deficiência. Mas eu posso dizer que eu renovei meu círculo de amizade, eu já estava um pouco afastado porque estava no Japão. Naquela época nem tinha redes sociais ou aplicativos como WhatsApp. Mas eu comecei a fazer amizade com pessoas com deficiência.

Como conheceu essas pessoas?

Conheci na reabilitação, que fiz na AACD. Também tinham grupos na internet, grupos de conversa, salas de bate-papos. Entrei em uma ONG também, o Direitos das Pessoas com Deficiência. Fui conhecendo um monte de gente. Então, vamos dizer que eu renovei as amizades. Mas não que descartei as antigas. Acrescentou um outro grupo que antes eu não tinha, que talvez não teria tido oportunidade para me aproximar se não tivesse passado por isso.

E como foi para chegar nessa sua profissão atual de especialista em acessibilidade e inclusão?

Desde antes, eu sempre gostei muito de passear e viajar. Tanto que minha ida para o Japão não foi com intenção de ganhar dinheiro, como a maioria. Também trabalhava bastante, mas a minha intenção era conhecer o país. Eu viajei o Japão inteiro, conheci todas as províncias. Eu ia para um lugar, trabalhava e nas minhas horas de folga ficava passeando. Depois que eu meio que conhecia toda a região, eu mudava de emprego e ia para uma nova região. Parecia um cigano. Vai para cá, vai para lá, vai conhecendo e conhecendo…

Você sempre trabalhou na área de turismo?

Nem sempre, um pouco antes de 2010, 2008 por aí que comecei a trabalhar em uma agência de viagem e daí sempre fui mais ligado ao turismo.

Entendi. Eu fiquei curiosa, porque não conheço como é o mercado de trabalho para as pessoas com deficiência.

No começo quando estava procurando emprego, já fui recusado alguns. Falavam “você é muito bom, é a pessoa que a gente queria, só que nosso lugar não tem como você entrar [não tem acessibilidade]”. Então na verdade era dever deles adaptar o lugar. Mesmo com leis e regras, as coisas não estavam tão boas assim.

Não seria também um prejuízo para a própria empresa, recusar recursos humanos que beneficiariam a empresa?

Também. Na verdade, ainda nos dias de hoje, algumas pessoas não veem isso como uma perda. Elas ainda veem, colocar pessoas com deficiência, como um trabalho.

O pessoal dessa empresa canadense, me contaram como é a visão do Canadá em relação às pessoas com deficiência. Lá é tudo melhor. Para a questão do trabalho, pessoas com deficiência é disputado. Porque para eles é um orgulho ter uma pessoa com deficiência trabalhando na sua empresa. E aqui rejeitam o máximo né. Acho que vem muito de um pensamento que tratam as pessoas com deficiência como um culpado. Na verdade, isso é um julgamento de uma coisa que não conhecem né.

O meu primeiro emprego depois da lesão foi um telemarketing. Eu sabia que não ia gostar, esse negócio é chato demais. Mas meus colegas me aconselharam “pega o primeiro emprego que tiver oportunidade de entrar, aceita, não interessa o que for”. Porque se você nunca trabalhou em nenhum lugar, vão achar que você não tem capacidade. Mas se você mostrar que já trabalhou, vão te olhar de um jeito diferente. Então eu tentei entrar nesse trabalho, mas eu sabia que sairia logo. Foi umas 8 pessoas, através do programa da AACD. O lugar do trabalho não tinha banheiro adaptado, tinha como entrar, mas não tinha banheiro. E daí a gente trabalhava de casa, home office. Eles davam linha telefônica, computador e você fazia o atendimento de casa. Um dos colegas, tetraplégico, que tinha um vozerão tipo de radialista, era uma das pessoas que mais vendia na empresa. E daí mudou o olhar dessa empresa, falou “nossa, tem nada a ver né, se é bom vou contratar”. “Aproveita então a lei de cotas”, “que lei de cotas nada, quero contratar pela capacidade, pessoal aí tem muita capacidade”. Aí eles acabaram contratando muito mais gente.

O que exatamente é acessibilidade e inclusão? É um assunto que atinge somente as pessoas com deficiência?

A inclusão é você dar oportunidade para todos. Para ter a inclusão, você precisa ter acessibilidade. Como no caso desse trabalho, não tinha como usar o banheiro, então não tinha inclusão, eu trabalhava no meu canto. Tipo uma segregação, eu estou junto, mas não estou. Estou junto, entre aspas. É aquilo: “diversidade é chamar para a festa, inclusão é chamar para dançar”. Não adianta você só abrir se fica na festa ali encostado no cantinho. Não. Tem que participar das coisas! E isso não é só para as pessoas com deficiência física, visual, auditiva, intelectual, idosos… É para todo mundo. Então, inclusão na verdade é ter um espaço e um serviço que possa atender a todo mundo.

Quais são as piores situações que devem ser evitadas com as pessoas com deficiência, as gafes?

Acho que depende de cada pessoa, independentemente do tipo de deficiência. Vamos pegar uma pessoa igual a mim, por exemplo, com o diagnóstico de lesão medular em nível C7. A pessoa pode ser igualzinha a mim, só que eu saio mais, então aprendi a me virar em alguns lugares. Aprendi a andar em escada rolante, como descer da calçada quando não tem rebaixamento de guia… A pessoa que não sai muito de casa não sabe fazer essas coisas. Mesmo tipo de lesão, mas são habilidades, capacidades e dificuldades diferentes. Então às vezes é uma coisa meio particular né.

Outra situação. Não chamo exatamente de gafe, até porque a gente compreende que a pessoa não tem o conhecimento, muita gente vem na boa vontade de ajudar. Eu dirijo, tenho carro. Eu coloco a cadeira no carro em menos de um minuto. Se uma pessoa vem me ajudar, demora uns cinco minutos. Uma pessoa geralmente não sabe fazer né, ela só tem a boa vontade e quer ajudar. E daí vai guardar a cadeira dentro do carro, às vezes ela bate e risca o carro… Então quando as pessoas vinham me ajudar eu tinha começado a recusar, “não, não quero”. E algumas pessoas falavam que ficavam chateados, porque tentavam ajudar e eu falava que não. Daí eu falei “então vamos mudar esse negócio”. Agora, quando vem “deixa eu te ajudar”, eu pergunto assim: “você sabe como faz?”. Geralmente, não. “Então, fica me olhando que eu vou guardar e você vai aprender como fazer, daí a próxima vez você já sabe como fazer”. Daí a pessoa vê que eu tiro a roda e fala: “nossa, a roda sai!”. Daí a pessoa aprende e de certa forma eu recuso a ajuda, mas não bloqueio totalmente a ajuda, desse jeito a pessoa não fica mais tão chateada.

Algumas coisas dependem da pessoa mesmo, não é só para a questão da deficiência né. O humor por exemplo, os humoristas que fazem piada com algum tipo de deficiência. No meu modo de pensar, o humor é você fazer graça com alguma pessoa ou alguma situação. Você vai zombar do outro, da mulher, do prefeito…

Agora, conversando um pouco sobre políticas públicas, qual a sua opinião em relação a pessoas com deficiência?

Eu não gosto muito. São muito burocráticos e nada práticos. O meu trabalho é mais com particular. Às vezes para você conseguir fazer algum projeto público, não que não dê resultado, mas para você fazer o serviço, vão te pedir centenas de documentos, vai ter que abrir petição… E quem sabe, não dê em nada. Falando com dono, proprietário, alguém que tem poder de decisão, é muito mais simples e mais efetivo. Então eu não ligo. Mas é importante ter políticos, ter gente que trabalha nessa área. Mas eu não tenho vocação, não tenho vocação para trabalhar com essa parte não.

O que poderíamos melhorar na política pública?

Na verdade, a gente tem muitas leis, que às vezes não são cumpridas, outras vezes que não foram muito bem elaboradas e acabaram não funcionando. A lei de cotas tem mais de 20 e não sei quantos anos, mas a sociedade fala que isso aí tem um impacto muito pequeno. Porque a lei de cotas serve para as empresas com mais de 100 funcionários, o que representa 1% das empresas brasileiras. A grande maioria é micro e pequenas empresas, não se encaixam nessa lei de cotas. Então, não que não dê resultado, mas o resultado ainda é pequeno. Por isso era importante que todo mundo cumprisse, mas não cumpre. Muitas empresas não cumprem. Então, esse 1% na verdade é zero virgula alguma coisa.

Podemos dizer que isso é uma resistência, né.

É uma resistência. Na verdade, precisa melhorar o jogo como um todo, não dá para culpar só políticas públicas, só as empresas, só a sociedade… Tem culpa também das próprias pessoas com deficiência. Todo mundo é culpado nessa história.

O que é mais importante para que todos possam trabalhar juntos, para participar desse processo de desenvolvimento de uma sociedade mais acessível e inclusiva?

Tirar o preconceito. Conhecimento às vezes você não tem. Eu não tinha. Já o preconceito é uma grande barreira. Uma das coisas que o pessoal acha mais difícil é o que chamam de ‘acessibilidade atitudinal’. Em alguns lugares, a pessoa não conhece exatamente o que é acessibilidade, vou lá e aponto os erros. Tem lugares que agradece muito, fala “não sabia que isso era um problema, vou arrumar”. Tem outros lugares que é “não sabia” e continua não fazendo nada. Então tem uma barreira sim para as pessoas que tem vontade de fazer uma mudança. Até porque se você fizer uma coisa bem-feita, isso vai trazer resultado para você. Por exemplo, um hotel fazenda. Ele tinha entrado em um projeto do Ministério do Turismo para acessibilidade. Foram profissionais para fazer as coisas bem legais ali. Daí o hotel começou a faturar mais do que o normal, porque abriu as portas para um outro público que é muito grande, tem milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Fora o mundo né, um hotel não é fechado só para os brasileiros, pode ter gente do mundo inteiro. A Organização Mundial da Saúde fala que tem um bilhão de pessoas com algum tipo de deficiência, sem contar idosos. Então você acaba tendo um retorno. Esse hotel já ganhou muitos prêmios, fatura muito dinheiro, acima da média nacional. O pessoal pergunta muito o segredo do sucesso e o proprietário fala que é investir na acessibilidade, que isso reflete em outros aspectos. 

E individualmente, o que podemos ir fazendo? Por exemplo, ao se deparar com um usuário de cadeira de rodas, deve-se perguntar se precisa de ajuda ou melhor esperar um pedido?

Pode perguntar sim. É só não ter iniciativas sem perguntar e não insistir. Às vezes, mesmo eu dizendo não, as pessoas querem ajudar. Se você acha que a pessoa está precisando de alguma ajuda, primeiro pergunte “você quer ajuda?”. E se o cara disser que não, é não (risos). Mas se você conhecer a pessoa ou se for coisa momentânea, é perguntar para a pessoa, ela vai saber melhor o que serve melhor para ela.

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