Conheça Hideaki Kobayashi, um dos ícones que popularizou o crossdressing no Japão

O Crossdressing é a prática de se vestir de modo socialmente do sexo oposto. Um exemplo bastante presente no universo de cosplay são pessoas que interpretam e representam seus personagens favoritos que são oposto ao seu gênero (também conhecido como crossplay). Outro exemplo é uma pessoa com o sexo biológico masculino, usar uma saia ou vestido, que são peças de roupas muitas vezes atreladas a feminilidade. Vale lembrar que o crossdressing é uma forma de expressão, não tendo relação com a orientação sexual ou identidade de gênero. Por tanto, não faz parte da sigla LGBTQIAP+.

No mundo atual em que o senso estético de homens e mulheres estão cada vez mais próximos, popularizando a concepção de que peças de roupas são unissex, aos poucos, os crossdressers (as pessoas que praticam crossdressing) têm ganhado mais espaço na sociedade. Mas como isso era há 10 anos? E no Japão, um país que ainda carrega valores e costumes conservadores em relação ao gênero e à liberdade de expressão?

Conversamos com Hideaki Kobayashi, mais conhecido como “tiozinho do uniforme de marinheiro” (“Sailor Fuku Oji-san”), um dos ícones que popularizou o crossdressing no Japão. Na entrevista, ele compartilhou a sua perspectiva sobre a sociedade japonesa em relação à liberdade de expressão, além de sua experiência como um fenômeno social e até das suas lembranças de quando participou do Programa da Sabrina, da exibido na Record TV.


A origem do “Sailor Fuku Oji-san”

Em 2013, a rede social Twitter ganhava popularidade no Japão e um simples homem trabalhador se tornou uma celebridade. Hideaki Kobayashi, que na época tinha 50 anos, teve suas fotos compartilhadas milhões de vezes. Tudo por conta da sua aparência singular: barba grisalha trançada com um lacinho nas pontas e uniforme marinheiro feminino.

Após 10 anos, o “tiozinho de uniforme marinheiro” ainda continua na ativa, trabalhando como engenheiro de softwares em uma empresa gráfica, aos seus 60 anos, e como crossdresser e youtuber em suas horas vagas.

No canal Singularity Salon, Kobayashi e três colegas seus, especialistas em diferentes áreas de ciências discutem sobre a singularidade tecnológica (um termo usado por pesquisadores de IA desde a década de 1980 para se referir ao ponto crítico entre os seres humanos e a inteligência artificial; em outras palavras, representa o ponto em que nasce a IA no mesmo nível do cérebro humano).

Como tudo começou

Kobayashi conta que desde a sua infância já gostava de coisas kawaii (fofas). “Desde a escola primária, eu pegava emprestado presilhas de cabelo das meninas e colocava em mim mesmo. Eu tinha inveja das meninas que usavam coisas kawaii e achava injusto porque elas podiam usar roupas esvoaçantes sem medo de serem julgadas”.

Após se tornar adulto, ele passou a pensar “se eu tenho tanta inveja, por que eu não vou lá e faço também?” e sua primeira experiência de vestir um uniforme colegial feminino em público foi no evento International Art Event Desing Festa, comumente abreviado como DesaFes. Trata-se de um evento de artes realizado em um dos maiores espaços de exposições do Japão.

“Fiquei sabendo que um colega meu que também é crossdresser, chamado Candy Milky, participaria desse evento, então pensei em recebê-lo a rigor”, explica Kobayashi. Conhecendo ele de hoje que desfila pelas ruas de Harajuku, respondendo aos pedidos de fotos dos fãs com poses kawaii de gatinho, é muito difícil imaginar que ficou nervoso ao participar do DesaFes pela primeira vez vestindo o seu traje marinheiro. “Precisei de bastante coragem. Me sentia como se estivesse fazendo algo errado e as minhas pernas tremiam, uma sensação de nervosismo”, relembra.

Candy Milky e tiozinho de uniforme marinheiro no DesaFes

No entanto, depois que tudo passou, ele percebeu que nada do que Kobayashi temia, de acabar sendo julgado ou insultado, não passava de um sofrimento antecipado e desnecessário. “Todo mundo me aceitou muito bem, ainda me elogiavam dizendo coisas como ‘ficou legal’, ‘que incrível’, ‘(a roupa) combinou com você’. Jamais tinha imaginado reações como essas”.

Com a primeira experiência marcada pelo sucesso, Kobayashi já podia sair pelas ruas vestindo a roupa que ele mais se sente confortável. Mas faltava-lhe uma motivação para ele dar esse passo maior. E o que acabou virando essa motivação foi uma campanha de uma casa de lámen, que desafiava adultos com mais de 30 anos, tanto homens quanto mulheres, a virem até o restaurante vestido de uniforme marinheiro feminino, para ganhar uma tigela de lámen de graça.

“Quando fui a casa de lámen vestido assim (com uniforme marinheiro feminino), eu não tinha ideia do que podia acontecer. Vai que eu levo bronca de alguém ou as pessoas comecem a aglomerar pensando ‘que isso?’ e acabe virando um tumulto? Todas as situações possíveis passaram pela minha cabeça.”

Assim como no DesaFes, as preocupações de antes acabaram não acontecendo e aos poucos o tiozinho de uniforme marinheiro foi expandindo sua área de atuação. Até que um dia foi fotografado por um desconhecido que publicou a foto no Twitter e viralizou. Kobayashi conseguiu uma tigela de lámen de graça, além da fama e liberdade para vestir a roupa que quiser em público.

Após enfrentar e superar a dificuldade de começar algo novo, hoje Kobayashi tenta incentivar mais pessoas a tomarem coragem.

“Antes (de fazermos algo novo), a gente acaba pensando muito nas reações de desaprovação possíveis. Pode ter gente que acabe te julgando, como também pode ter gente que não. E isso a gente só descobre depois de tentar. Então, é melhor colocar na prática antes de mais nada. Se você está na dúvida entre fazer ou não fazer, por que não fazer? (risos) Eu penso assim.”

Repercussões nas áreas pessoal e profissional

O seu sucesso na internet resultou em inúmeras entrevistas de mídias nacionais e internacionais, além de convites para ministrar palestras e até a participação em programas de televisão e videoclipes de músicas. Era impossível que as pessoas ao seu redor não notasse a sua popularidade.

A tamanha fama trouxe até reencontros inesperados com seus colegas de sala da época da escola primária, com quem Kobayashi acreditava não ter mais chances de revê-los. Um de seus amigos que o reconheceram através da televisão encontrou com ele por acaso na rua e fez questão de trocarem contato novamente, depois de décadas.

Enquanto seus amigos o receberam positivamente o modo que o Kobayashi se expressa, o seu ambiente de trabalho foi um pouco “indiferente”.

“Por incrível que pareça, ninguém toca muito nesse assunto. Quando eu apareci na TV ou em revistas, algumas pessoas chegavam a comentar ‘eu te vi’. Mas a maioria não vem falar sobre, mesmo sabendo desse meu lado. A menos que eu mesmo toque no assunto. E a minha empresa me pede para não ir trabalhar com essa roupa, embora eu prefira (risos)… Não sei exatamente o porquê, mas dizem que deixam as outras pessoas desconfortáveis. Para eles, se fosse por motivos de identidade de gênero, aí não teria problemas, porque não é algo que a pessoa tem escolha. Mas no meu caso é mais como eu me expresso, por isso eles pensam ‘se você tem a opção de vir ‘normal’, não tem por que vir ‘diferente’’. Consideram-me algo tão bizarro ou incomum que ficam preocupados com coisas como afetar o rendimento das outras pessoas ao redor.”

Embora a sua empresa não seja muito receptiva, Kobayashi explica que a sua forma de se vestir nunca interferiu negativamente o seu trabalho.

“Eu trabalho na mesma empresa há 35 anos, nunca fui mandado embora ou mandado para alguma unidade aleatória. Sempre fui contratado igualmente como qualquer outra pessoa e levo uma vida normal de um assalariado. Acho que eu posso dizer que sou uma evidência de que ‘não precisamos nos preocupar tanto’”.


Leia a segunda parte da matéria para conhecer a perspectiva do Kobayashi sobre a sociedade japonesa em relação à liberdade de expressão e suas lembranças de quando participou do Programa da Sabrina, na Record TV, em 2015.

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