
(Por Lika Shiroma)
Quem se depara com Seizi Tagima, de aparência calma e serena, mal imagina que está diante de um senhor “de respeito”, principalmente entre músicos consagrados do País. Afinal, é das mãos dele que saíram (e saem) diversas guitarras e violões que viraram verdadeiras lendas em cima dos palcos. Desde nomes consagrados da MPB até guitarristas virtuosos do Heavy Metal, muitos instrumentos com a marca do nissei transmitem alegria e energia a milhões de pessoas por todo o Brasil.
Hoje, aos 74 anos – sendo quase 43 dedicados à arte de construir instrumentos – Seizi colhe os frutos de um trabalho que se baseia em valores trazidos pelos primeiros imigrantes japoneses que se estabeleceram no Brasil há 114 anos: persistência, disciplina e humildade. “Trabalho nos projetos focado nos detalhes desde o começo, em 1979, buscando sempre entregar o melhor produto que, no meu caso, são guitarras e violões. É uma profissão um pouco diferente do que os japoneses estavam acostumados à época”, explica, ao receber a reportagem do Nippon Já na sede da Royal Music, em São Paulo, que hoje distribui suas linhas “Seizi Guitars”.
Antes de iniciar como luthier (profissional especializado na construção e no reparo de instrumentos de cordas), a vida de Seizi era, basicamente, como a da maioria dos jovens oriundos de famílias japonesas, pois morava no interior paulista e trabalhava na agricultura ajudando no sustento da casa. Até que um fato mudou completamente o rumo dos Tagima: a morte do patriarca. Foi então que ele, a mãe e os irmão decidiram mudar para São Paulo. A partir dali a vida tomaria rumos nunca antes imaginados pelo então garoto.

Na cidade grande, o jeito era se virar. Conheceu um descendente de armênio e logo foi chamado para trabalhar com vendas. Era bom no que fazia, galgando posições até o cargo de gerente. “Mas sempre estava fazendo outras coisas, não conseguia ficar parado”, lembra. Irrequieto por natureza e aventureiro por opção, começou a consertar aparelhos diversos, como máquinas fotográficas e outros eletrônicos. Em casa, a garagem serviu de laboratório para suas experimentações malucas, customizando motos simples em versões para motocross. “Era curioso mesmo, ‘fuçador’, abria aparelhos, olhava peças, mexia em tudo. Queria entender como funcionava as coisas. Sou assim até hoje”, recorda.
A moto que o levou para a guitarra – Nessa época, já próximo dos 20 anos, um vizinho estava com a moto quebrada e ele resolveu dar uma mão. “Ao finalizar o conserto, o pagamento não foi feito com dinheiro, mas sim com uma guitarra. A partir daquele momento, minha ligação com o instrumento começava. Mal sabia que era dali em diante que minha vida se voltaria para a área musical”, diz. Como era uma época em que a Jovem Guarda explodia na televisão e fazia a cabeça da geração mais nova, ele tinha o desejo de “arrebentar” no instrumento. Agora, com ela em mãos, poderia tocar seus primeiros acordes e ter um novo hobby. “Estava eufórico e empolgado, né? Imaginava tocar, tirar um som bacana. Mas quando fui tocar essa guitarra, percebi que não estava legal. Fiquei frustrado, porém, como já tinha um pouco de experiência em mecânica, pensei: ‘quer saber, eu mesmo vou tentar ajustar esse negócio’. Deu certo e consegui deixá-la boa”, relembra.
Além de tocar algumas músicas, trabalhar com vendas e, nas horas vagas, fazer serviços de mecânica, Seizi começou a se envolver com o cenário musical pintando algumas guitarras. O que ele customizava nas motos (pinturas exóticas e cores chamativas) começou a implementar nos instrumentos, “sem pretensão”, como costuma dizer. Certo dia, um amigo que já tinha destaque na cena – o guitarrista Joe Moghrabi – ao observar que o nikkei tinha ferramentas de pintura semiprofissionais, pediu que desse um trato na sua guitarra. “Pintei de verde bem chamativo. Como foi um trabalho detalhista, o resultado ficou bom. Outros músicos começaram a perguntar a esse meu amigo onde que ele tinha feito. De uma hora para outra apareceram guitarristas querendo customizar os instrumentos”, explica o luthier, puxando da memória até o jeito que era conhecido: “Falavam que tinha um japonês que pintava guitarras como ninguém. Era assim que me conheciam”.

Como no meio musical os músicos trocam figurinhas o tempo todo, o “japonês da guitarra” logo ficou famoso. De repente, eram dezenas delas de todo o canto da cidade que estavam esperando o toque mágico “do japonês”. E como curiosidade sempre moveu sua essência, Seizi Tagima aproveitou para aprender a parte técnica do instrumento também, “não apenas deixar a guitarra esteticamente mais bonita”. “Tive contato com dois luthiers e um deles me ensinou toda a parte de construção, me passou os conhecimentos básicos. A construção de guitarra é relativamente simples, totalmente mecânica. Só que tem a parte complexa do negócio, né? O difícil é entender a essência do instrumento, as características, como ‘pegada’ e ‘shape’ (corpo do instrumento). Equilibrar esses elementos é o segredo de uma boa guitarra”, revela.
Empreendendo sem querer – Com a fama cada vez mais aumentando entre músicos e já entendendo a maneira de construir uma guitarra, o “Sérgio” (como ficou conhecido no meio, pois muitos não conseguiam pronunciar “Seizi”) logo se viu construindo instrumentos para os mais variados músicos, de diferentes estilos. Conforme a demanda ia crescendo, foi necessário expandir o pequeno negócio artesanal: contratação de mão-de-obra e compra de equipamentos para auxiliar na produção. Largou o emprego na área de vendas em 1989, vendeu um Gol Turbo que tinha na época preparado por ele mesmo e foi atrás de fornecedores. Mesmo sem se dar conta, nascia ali o empreendedor Seizi Tagima. “Foi tudo na base do sentimento, sabe? Nunca tive esse lado de montar empresas, de ser homem de negócios. Meu negócio mesmo era inventar, então decidi ir a fundo nas pesquisas sobre melhores madeiras para guitarra, estudo de formatos do instrumento, a parte de componentes elétricos. Enfim, essas coisas”, explica.
À medida que a pequena empresa crescia, uma outra ponta também convergia para alavancar as vendas, pois à época as guitarras nacionais não possuíam uma boa qualidade. Já as importadas eram fora da realidade econômica dos músicos brasileiros. O nicho de instrumentos tupiniquins que entregavam boa qualidade por um preço justo estava, portanto, em aberto. “Preenchemos essa lacuna, acertamos na questão de produção nacional de guitarras. Tenho orgulho de ter participado desse segmento criado no Brasil. Mesmo sem saber, né. Quer dizer, sabia sim, mas não imaginava como um setor que explodiria”, comenta.

Domínio de mercado – Posicionado na faixa intermediária do mercado, pois os modelos nacionais eram baratos e de qualidade baixa e as importadas como Gibson e Fender tinham um preço elevado, a Tagima logo alcançou status de marca de confiança. O ritmo de produção foi aumentando, chegando a fabricar mais de 1,2 mil guitarras por mês, um feito extraordinário para uma fabricante brasileira. A marca ficou muito famosa, ao ponto de grandes estrelas do cenário roqueiro empunharem uma Tagima nos palcos, em entrevistas e fotos de divulgação. Nomes de peso mesmo: Luan Santana, Herbert Viana (Paralamas do Sucesso), Kiko Loureiro (Angra e hoje no Megadeth), Andreas Kisser (Sepultura), Paulo Ricardo (RPM), Edu Ardanuy (ex-Doctor Sin) e Reinaldo Meirelles (guitarrista de Gusttavo Lima), dentre tantos outros. “Ganhamos o carinho e o respeito de diversos músicos. Todos acreditaram e, mais ainda, viram que as guitarras tinham uma qualidade acima. A grande maioria são meus amigos pessoais e sempre trocamos ideias sobre projetos de guitarras. É um barato”, diverte-se. Uma de suas criações mais difíceis, segundo ele, e que muitos já devem ter visto é a guitarra do saudoso Bento Hinoto, da banda Mamonas Assassinas, morto em 1996 após a queda da aeronave que transportava os músicos. “Ele (Bento) me pediu uma guitarra ‘assim, assado e tal’. Deu um baita trabalho, mas ficou perfeita. E foi um instrumento pensado com bastante carinho e cuidado. Bento era um guitarrista excepcional e sua arte inspirou e alegrou milhões de brasileiros. Foi uma honra e um orgulho imenso ter feito esse instrumento”, recorda o luthier.

Toda a energia e foco criativo de Seizi, cujos resultados eram produtos finais de bom gosto e qualidade, porém, resultaram em uma deficiência na parte “business”, em especial na questão administrativa. Como ele mesmo disse que o forte nunca foi administrar, a empresa contraiu dívidas e quase foi à falência. A saída foi unir-se ao empresário Ney Nakamura, dono da Marutec e que deu sobrevida à empresa, lá pelos idos de 1996, implementando organização, gestão e processos. A Tagima, assim, voltou aos eixos. Logo em seguida veio a proposta de compra da marca, da qual o fundador aceitou.
Com a empresa retomando o fluxo de produção e com o caixa equilibrado, a preocupação de Seizi era apenas em produzir modelos novos e zelar pelo padrão de qualidade. Foi assim até 2007, quando decidiu que era hora de novos desafios. “Um ciclo que se fechou, mas todo final possui um novo começo. Fui seguir a vida”, define.
Recomeçar é uma arte – Após uma pausa para refrescar a cabeça, era o momento de partir para novos projetos. Mesmo sem poder utilizar mais o nome da marca, o nissei continuava com sua essência de criar e projetar guitarras. “Imagina: fiquei praticamente a vida toda construindo guitarras. O que mais poderia fazer da vida? Construir novas guitarras, é claro”, explica.
Foi quando, em 2009, surgiu a oportunidade de se unir à Royal Music, distribuidora de instrumentos e acessórios musicais de marcas conceituadas como Gibson, Zoom, Lava Music , Epiphone, Music Man, GK e Orange Amps. O CEO da empresa, René Moura, fez questão de trazer “uma das lendas da guitarra nacional, com uma história fantástica”. “O Seizi é um ícone, um legado imensurável na música brasileira. Foi e é uma grande honra poder trabalhar ao seu lado. Aprendo uma coisa nova toda vez que nos encontramos”, diz.

Para Seizi, o recomeço nada mais foi do que uma abertura para uma nova transformação. Afinal, o mesmo luthier lá de 1979 estava ali, todavia com os conhecimentos ampliados e mais experiência. Assim novamente retomou estudos, montou projetos e deu vida às suas criações. Tanto é que, nem tanto tempo atrás assim, chegaram ao mercado os violões e guitarras da “nova era”, com a assinatura “Seizi” e trazem, em essência, toda a filosofia japonesa: há linhas como “Katana” e violões que vão do “Ryu”, passando pelo “Fuji” até “Kaiju”.
Profundo admirador da cultura japonesa (além de sempre ter sido fã do próprio Seizi), René conseguiu “unir o útil ao agradável”, pois partem dele os conceitos por trás dos lançamentos, de explorar nomes japoneses nos instrumentos e de, acima de tudo, ter como filosofia na própria empresa o “kaizen”, conceito que se refere às atividades de negócios que melhoram continuamente todas as funções e envolvem todos os funcionários. A pesquisa sobre cultura japonesa é tão intensa que ele mesmo já viajou ao Japão duas vezes, em busca de inspiração e conhecimento. “Aqui na Royal buscamos sempre nos aperfeiçoar. E o Seizi também sempre teve isso, portanto foi uma junção de forças muito harmoniosa”, complementa René. Forças essas que resultaram em grande visibilidade, diga-se: em dois anos e meio, a marca tornou-se referência no Instagram, com mais de 260 mil seguidores, sendo a maior de instrumentos musicais do país na rede social.
Nos mais de dez anos já de parceria Royal-Seizi, muita água passou embaixo da ponte. Projetos que não foram lá 100%, ideias que não vingaram, planos diferentes do imaginado. Até mesmo um AVC (Acidente Vascular Cerebral), há cerca de seis anos, foi uma adversidade vencida por Seizi. Por outro lado, o amadurecimento de mercado, a experiência e, em especial, os três valores citados no começo do texto (persistência, disciplina e humildade) deixam tanto René quanto o “samurai da guitarra” de pé, prontos para qualquer batalha. A próxima, inclusive, já tem data marcada: o lançamento da linha de guitarras, marcado para junho.
“Olhando toda essa história, penso que estamos em uma jornada que vai dar em algum lugar. No meu caso, estou feliz em seguir criando guitarras e violões, fazendo o que sempre gostei de fazer. Nunca pensei em reconhecimento, em ter visibilidade. Acho que tudo isso foi uma consequência de um trabalho focado em perfeição, em detalhes mesmo. Sou grato a tudo pelo que passei. E, atualmente, sou grato por poder continuar na arte de construir uma guitarra, um violão. Encurtando a história: faço para os clientes o que faria para mim mesmo. Tenho muito respeito por cada criação, cada detalhe e cada sentimento. E assim vamos indo”, finaliza Seizi.