No mundo do animê e mangá, há diversas subculturas que orbitam nesse ecossistema. Uma delas é, com certeza, o “cosplay”, que é a prática de interpretar, através de figurinos específicos – sejam de animês, mangás, jogos e até obras ocidentais – personagens de sucesso (ou nem tanto). Nesse sentido, o “cosplayer” é o responsável por “vestir a camisa”.
Maria Luiza Grantaine, ou mais conhecida como Moo chan na internet, é uma das cosplayers mais atuantes no País. Atriz, dubladora e cosplayer há 13 anos, atualmente trabalha produzindo e apresentando conteúdos sobre cultura pop para o portal Omelete e outros trabalhos de dublagem independentes. Nós do Nippon Já conversamos com ela sobre o panorama do cosplay por aqui, além da possibilidade de se tornar esse “hobby” em ganha-pão.
Maria Luiza tem 29 anos, nasceu em São Paulo e cresceu na região de Itaquera, na Zona Leste. É formada em curso técnico como atriz e escolheu o Rádio e TV no curso superior. Sempre praticou esportes, mas alguns cursos mudaram o rumo dela e colaboraram para sua formação atual, principalmente os de corte e costura e modelagem de roupas. Também aprendeu idiomas ao longo dos anos, caso do inglês, francês (que entende bem) e japonês (que voltou a estudar no ano passado). Conta que “consumir mídias dessas línguas foi essencial para já estar familiarizado no momento da aprendizagem”.
Ela não tem ascendência oriental, mas desde criança sua família já tinha contato com a cultura japonesa, principalmente por uma tia ser casada com um descendente japonês. Soma-se a isso o fato de morar perto da colônia japonesa na região de Itaquera, adotando, inclusive, hábitos japoneses dentro de casa. Foi na adolescência que surgiu a paixão pelos animês e mangás, veiculados nos programas da televisão aberta, revistas e outras publicações que abordavam tais assuntos. “Sempre foi um ponto de interesse, porque de certa forma eu me identificava ali como eu não me identificava em outros lugares. Então quis aprender para entender um pouco melhor da cultura em si, não só para consumir a mídia”, explica.
A futura cosplayer já conhecia e gostava de muitas outras obras da animação japonesa, mas quando teve contato com Sakura Cardcaptor “a chave virou”. “Foi uma paixão muito maior, principalmente porque os figurinos da Sakura são muito elaborados, bem interessantes”, conta. A série de sucesso conta a aventura de uma garota, Sakura Kinomoto, que precisa recuperar as cartas mágicas perdidas que se libertaram de um livro. A melhor amiga, Tomoyo Daidouji, cria figurinos diferentes a cada episódio para Sakura. Foi a partir do contato com essa obra que despertou o interesse de Maria Luiza para se fantasiar, além de motivá-la para seguir uma carreira relacionada a figurinos e interpretação de personagens.
O primeiro cosplay e o crescimento do cenário no Brasil
Quando sua condição financeira permitiu investir mais no cosplay, já tinha passado algum tempo desde que conheceu “Sakura Cardcaptor”, e a versão na obra “Tsubasa Reservoir Chronicle”, em que a personagem aparece mais crescida, combinou perfeitamente com a sua idade da época. Mas lembra que para ser cosplay não há idade, cor de pele ou tipo físico. “A aproximação da pessoa com a personagem acontece de forma natural. No cosplay, assim como no teatro, você pode recriar e interpretar qualquer personagem, porque é a sua versão dela”, diz. Vale ressaltar que a única contraindicação é para menores de idade e crianças interpretando personagens “adultos”, para evitar influências negativas. Ela diz que, recentemente, se desafiou a fazer cosplay da Sakura jovem de dez anos – isso com seus 29 anos de idade.
Seu primeiro figurino da Sakura, em 2009, foi encomendado para uma costureira especializada em cosplay que conheceu através de indicação de amigos, e alguns outros figurinos que vieram depois foram mandados para a costureira que fazia reajustes. Mas, em 2011, decidiu aprender a confeccionar sozinha por ela mesma, quando percebeu que só assim ela poderia satisfazer totalmente suas expectativas.
Desde os anos 90 já encontrava especialistas em cosplay no território nacional, que produziam figurinos, perucas e outros artigos a encomenda dos clientes e eram remunerados por seus serviços. Nesta época a população cosplayer ainda não era grande, portanto muitas vezes estes profissionais precisavam de outro emprego para pagar suas contas. Atualmente com o aumento da gama de opções para monetização, como lives e streamings, e a popularização de pequenos negócios, as possibilidades para um profissional na área de cosplay também têm crescido. Maria Luiza conhece pessoas que trabalham como modelo, figurinista e costureiro na área de cosplay que não dependem de outras rendas, se sustentam apenas com o trabalho pelo qual sentem prazer em realizar.
Alçando os primeiros voos na carreira de cosplayer
Na época em que estava se formando no ensino médio, Maria Luiza estava confusa e ainda não sabia o que queria para o seu futuro. Enquanto a maioria dos seus colegas estavam prestando vestibular, a única certeza que ela tinha era que isso ela não queria. Mas não ficou parada: decidiu trabalhar dando aulas de inglês para ajudar seus pais e começou a estudar corte e costura. Foi o tempo suficiente para ela pensar em como poderia transformar suas paixões em profissão, lembrando dos animês dublados que assistia e as interpretações de personagens que já fazia através do cosplay. Decidiu então fazer o curso de teatro, que a fez ter certeza de que estava no caminho certo e decidida a entrar para o mercado de dublagens.
“Quando percebi, já estava trabalhando com isso”, diz Maria Luiza. Se formou atriz com objetivo de ser dubladora, mas na época sua saúde psicológica não estava nas melhores condições. Teve depressão e ansiedade, o que a impossibilitou de se dedicar a esse grande sonho como ela realmente gostaria. Mesmo com as adversidades ela não parou, procurou outras atividades chegando ao curso de rádio, TV e internet. Foi quando apareceu a ela um convite para participar do teste para apresentar um programa de televisão sobre animê e mangá. Foi aprovada e participou deste projeto por cinco anos. Atualmente está em outro trabalho já há um ano e que também trata de assuntos sobre a cultura pop japonesa. “Rolou, só aconteceu. Mas gosto muito disso, do que eu faço. Eu sei que a Maria Luiza de 10 anos que assistia Sakura estaria orgulhosa e bem feliz, pois trabalho com o que eu sempre fui apaixonada”, reconhece.
“Eu fazia bullying reverso”
Hoje, com a ajuda da internet, a cultura pop japonesa tem se tornado popular e de mais fácil acesso mesmo aqui no ocidente, mas nem sempre os caminhos foram fáceis. Maria Luiza conta como já foi comum as pessoas amantes dessa cultura, que muitos se autodenominam “otaku”, sofrerem bullying há alguns anos. Ela mesma já teve experiências com gente desrespeitosa. “Toda vez que alguém chegava e era um pouco hostil em relação ao que eu gostava, eu não deixava. Porque para mim aquilo era a coisa mais incrível do mundo. Ignorante era a pessoa que estava sendo rude comigo”. Mas também ressalta a importância da própria comunidade otaku tomar os devidos cuidados para não desrespeitar ou ofender os descendentes ou a cultura japonesa em si por simples falta de conhecimento. Segundo ela, “por mais que nos identificamos com a cultura japonesa, não devemos nos apropriar daquilo que realmente não nos pertence”.
Conciliando a vontade dos pais e o seu sonho
Maria Luiza se considera privilegiada por ter os pais que nunca foram contra seus objetivos e principalmente pela sua mãe ser compreensiva e apoiá-la a tudo que tinha vontade de tentar. Sobre a época que estava se formando do ensino médio e decidiu não prestar vestibular naquele momento, conta: “Claro, eles ficaram preocupados. A minha mãe falou que eu tinha que ter uma formação, tanto que depois de anos fiz faculdade”. Para ela, foi muito importante que seus pais deram seu tempo, respeitando o seu ritmo, para se preparar e se entender melhor. “Eu sabia que não ia passar no vestibular se prestasse naquela época. Eu tenho TDAH hoje então eu sei disso, mas na época não sabia”. TDAH é a abreviatura para Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Ela conta que devido a esse problema sempre apresentou dificuldades nas matérias de matemática, química e física, que são essenciais para aprovação em vestibulares. Graças ao apoio dos seus pais, ela pôde seguir a carreira artística, que para ela era o caminho mais natural. “É muito importante os pais apoiarem a individualidade dos filhos, porque a pessoa vai ser bem sucedida naquilo se ela realmente gosta. Não precisa seguir uma carreira tradicional para se dar bem, ser feliz, conseguir recursos e construir uma família. Hoje, eu trabalho e recebo um salário falando de animê, galera. É possível, sim”, destaca.
Como foi que um “hobby” passou a ser “trabalho”
Talvez seja comum a ideia de que é inevitável deixar de se dedicar às coisas que gosta quando chega a vida adulta e que é necessário se empregar com um ofício desgastante e desgostoso. Mas Maria Luiza nunca deixou de acreditar que ela trabalharia com aquilo que a proporcionasse satisfação e, por sua sorte, teve a família que lhe deu toda liberdade e apoio para seguir seu caminho. “Eu sou muito grata, porque eu tenho certeza que seria muito infeliz se eu estivesse fazendo qualquer outra coisa”, pondera. Mesmo sendo uma profissão que ainda não é muito bem vista por algumas pessoas (por se tratar de animê acabam associando com algo infantil), ela conta com maior orgulho e felicidade que o seu trabalho a permite apresentar e compartilhar os mais verdadeiros sentimentos que essas obras causam em quem assiste. Isso, para ela, é uma experiência inestimável.
Seu primeiro trabalho remunerado na área foi para o canal de televisão por assinatura Play TV, em 2016. Recorda o quanto ela ficou surpresa de receber um valor que ela nunca tinha conseguido com outros empregos que eram muito mais exaustivos para ela. Reconhece que foi uma oportunidade única e que não é comum de acontecer. “Eu acho que existe sim a possibilidade de trabalhar com o que a gente gosta, mas a gente precisa se cercar disso sempre, manter contato com pessoas e ir atrás mesmo. Porque se a gente está aqui estudando para medicina, dificilmente aparecerá uma oportunidade de você fazer algo que esteja muito diferente disso, né”, acrescenta. Após o trabalho para PlayTV, abriram-se as portas para mais convites de trabalhos: já atuou como apresentadora de eventos e até jurada de concursos de cosplay.
As tão sonhadas viagens para o Japão
Maria Luiza já foi duas vezes ao Japão, a primeira em 2014 “foi por conta”, como ela mesmo diz, poupando o suado dinheiro que entrava. Já a segunda vez, em 2019, foi a trabalho para produzir conteúdo destinado ao público otaku, em parceria com uma agência de viagem.
Ela conta que as duas vezes foram experiências muito diferentes e únicas, e conseguiu sentir as diferenças que o Japão sofreu durante esse intervalo de cinco anos. A mais notável foi que, em 2014, ainda tinha muito estranhamento com estrangeiros, o que em 2019 já era indiferente. Mais um fator que fez ela enxergar o país com outros olhos foi a maturidade adquirida com experiência de vida. Ela conta que na primeira vez que foi ao Japão ainda tinha uma imagem muito idealizada sobre o país, e que na segunda visita conseguiu ser mais realista, entendendo e respeitando melhor as diferenças culturais, não só em relação ao Japão, como com Brasil também.
Mas só duas passagens por lá não foram suficientes para visitar todos os lugares que Maria Luiza tem vontade de conhecer. Ainda pretende voltar ao arquipélago – de preferência, bem acompanhada. “Uma coisa muito gostosa para mim foi passear com os amigos brasileiros lá. Porque a gente cresceu aqui, de um jeito bem diferente dos japoneses, mas sempre admirando a cultura, vendo aquilo nos animês e mangás, nos identificando com isso… Então foi gostoso poder compartilhar esse momento com os amigos, nos divertindo como brasileiros, vivendo essa experiência que nos inspirou tanto”, relembra a cosplayer.
Mas, e aí? Dá dinheiro ou não dá?
Com o que Maria Luiza recebe hoje, conseguiria se sustentar para pagar sua própria moradia e despesas. Também tem vontade de morar sozinha, mas atualmente prefere morar com os pais por se dar bem com eles, para aproveitar o tempo juntos que não tiveram antes deles se aposentarem e por poderem contar uns aos outros quando precisam.
Para ela, seguir esta jornada é como qualquer outra. Afinal, o mercado otaku hoje apresenta um leque de opções para trabalho, “só é necessário persistência, dedicação de tempo e esforço, assim como em outros ramos, para alcançar o sucesso”.
Ao final do bate-papo, Maria Luiza deixa uma mensagem motivadora aos jovens que se inspiram e se espelham nela: “Tudo que eu aprendi com animê e mangá, e com a minha relação com a cultura japonesa é: siga seus sonhos. Eles sempre estiveram certos. Então, sigam seus corações que vão conseguir conquistar aquilo que vocês querem. Independente em que momento da vida isso vai se realizar, não desistam”.
Aos que se interessaram pela cosplayer, ela apresenta o quadro “Bentô” no portal Omelete, que está ganhando o seu canal próprio no YouTube. “A gente vai alimentar o público otaku com a cultura pop”, conta. Em seu perfil do Instagram é possível ter acesso a todos os projetos que ela atua, como fotos de cosplays e podcasts: instagram.com/kidzastr/