ESPECIAL: Mangás e Animes: Uma Jornada Cultural do Japão ao Brasil em 130 Anos

No Japão arrasado pela Segunda Guerra Mundial, os mangás e animes surgiram como um sopro de esperança. Artistas como Osamu Tezuka, considerado o “pai do mangá moderno”, usaram histórias como Astro Boy (1952) para retratar crianças que caminhavam quilômetros até a escola ou superavam adversidades com esforço. “Era um reflexo da sociedade japonesa da época, que se reconstruía com perseverança”, explica Francisco Sato, da ABRADEMI (Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações), entidade fundada em 1984. Essa narrativa de superação cruzou oceanos e chegou ao Brasil nas malas dos imigrantes japoneses, que, desde os anos 1960, importavam revistas miscelâneas com mangás em japonês. “Os jovens nisseis (segunda geração de descendentes) usavam o furigana (notas fonéticas) para ler. Era uma forma de manter viva a cultura”, relembra Francisco.

Enquanto os mangás circulavam em comunidades nipônicas, os animes davam seus primeiros passos na TV brasileira. Em 1963, Nacional Kid, uma série live-action de super-heróis, estreava em preto e branco. “As TVs monocromáticas limitavam a experiência, mas as crianças já se encantavam”, comenta a pesquisadora, historiadora e escritora d a cultura pop japonesa, Cristiane Sato. A virada tecnológica veio nos anos 1970, com a Copa do Mundo: “As transmissões via satélite em cores impulsionaram a venda de TVs japonesas fabricadas em Manaus. De repente, séries como Speed Racer ganhavam vida em tons vibrantes”.

Nos anos 1980, enquanto os animes enfrentavam um hiato, os tokusatsus (séries com efeitos especiais) como Jaspion e Ultraman conquistaram o público. “Crianças paravam descendentes japoneses na rua, achando que eram heróis de verdade”, relembra Cristiane, citando um episódio em que um amigo foi confundido com o Jaspion em Belo Horizonte. Paralelamente, o SBT, sob comando de Silvio Santos, tratava animes como atrações familiares. “Ele anunciava Andy (Ai no Wakakusa Monogatari) como se fosse novela: ‘Mudem de canal depois da novela da concorrente!’”, imita. Enquanto isso, fãs traduziam mangás à mão, como mostra um TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de 1972 da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP (Universidade de São Paulo), doado para a Abrademi: “Era um trabalho artesanal, feito com caneta e régua, décadas antes da internet”, destaca Francisco.

A explosão global mesmo ocorreu nos anos 1990. Cavaleiros do Zodíaco (1994) virou febre: “Revistas como ‘Heróis do Futuro’ recebiam cartas de amor para os personagens. Malotes de cartas chegavam de Kombi”, recorda Cristiane. Logo depois, Dragon Ball Z, Sailor Moon e Pokémon consolidaram os animes como fenômeno. “Pokémon não é só um desenho: é um conceito que redefine o kawaii (fofura) e influencia até a moda”, afirma. No museu, um telão interativo mostra essa evolução: “Temos desde Astro Boy até Demon Slayer, que resgata o período Taishō (1912-1926) com uma estética vintage e narrativas modernas”, explica Cristiane, apontando para a linha do tempo que atrai jovens cujas camisetas trazem estampas inspiradas na série.

Hoje, o desafio é equilibrar sucesso comercial e originalidade. “Muitas produções repetem fórmulas, como a Marvel fez com super-heróis. Demon Slayer prova que ainda há espaço para inovação, desde que não se copie apenas o que vende”, reflete Cristiane. Para Francisco, o legado vai além do entretenimento: “Transformamos a imagem do japonês no Brasil: de ‘exótico’ a criador de universos que falam de família, esforço e sonhos”.

A exposição permanente no Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em São Paulo, encapsula essa jornada. Entre storyboards de Jaspion, edições raras de mangás dos anos 1950 e o telão interativo, visitantes descobrem como o Japão, que parecia distante nos anos 1960, hoje habita o cotidiano brasileiro através de pixels e páginas. “Mangás e animes são pontes”, finaliza Cristiane. “Mostram que cultura não é estática: é um diálogo que começou em preto e branco e hoje coloriza o mundo”.

Francis Sato explica a história da ABRADEMI

Confira a seguir um bate-papo com Cristiane e Francisco Sato, considerados pioneiros da divulgação, estudo e análise sobre a influência e a trajetória dos animes e mangás no Brasil:

Diário Brasil Nippou: Como começou a presença dos mangás no Brasil?
Francisco Sato: Os imigrantes japoneses compravam revistas em japonês que traziam mangás. Na época, não eram revistas só de mangá: eram revistas com contos, romances e histórias diversas. No meio, tinham alguns mangás, mas bem diferentes dos atuais. Com o tempo, os mangás foram ganhando espaço até terem a configuração que conhecemos hoje. Os jovens imigrantes, que ainda falavam japonês em casa, usavam o furigana (notas fonéticas) nos mangás para facilitar a leitura.

DBN: Qual foi a principal influência dos mangás antigos na geração nissei?
Francisco Sato: A maior influência estava no conteúdo, não na parte visual. Os mangás das décadas de 1950/60 refletiam o Japão pós-guerra: histórias de crianças que caminhavam quilômetros até a escola, enfrentavam dificuldades e se esforçavam para superar desafios. Isso se conectava com a realidade dos nisseis daqui, cujos pais eram agricultores ou comerciantes. A mensagem era clara: estudar, trabalhar duro e superar adversidades. Nos quadrinhos americanos, o herói já nasce com superpoderes; no mangá, o personagem evolui, envelhece e conquista tudo com esforço.

DBN: Como os mangás antigos diferem dos atuais, como Dragon Ball ou Pokémon?
Francisco Sato: Antigamente, os mangás mostravam superação realista. Hoje, muitos são mais fantasiosos, parecidos com jogos. Por exemplo, em Dragon Ball, os personagens têm batalhas épicas e “ressuscitam”. Já nos mangás antigos, o foco era a evolução gradual: um menino de 15 anos virava adulto, terminava o colégio, e a história acompanhava essa jornada. Isso mudou porque a sociedade japonesa também mudou: as gerações pós-1980 não viveram as privações do pós-guerra.

DBN: Por que o mangá se popularizou entre brasileiros não descendentes?
Francisco Sato: A tradução ajudou, mas a essência está na identificação. O mangá mostra personagens que evoluem como pessoas reais: estudam, trabalham, envelhecem. Nos quadrinhos ocidentais, o Super-Homem sempre tem 30 anos e não muda. Além disso, temas como esforço e família ressoam aqui. Muitos brasileiros, mesmo sem ascendência, viram suas próprias histórias refletidas nesses mangás.

Primeira convenção de mangá e anime organizada pela ABRADEMI na década de 90

DBN: Qual é o papel da ABRADEMI nessa história?
Francisco Sato: A ABRADEMI surgiu para divulgar o mangá quando quase ninguém o conhecia. Organizamos exposições, como uma no Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social) nos anos 80, e cursos de desenho. Lutamos até para criar o primeiro museu de mangá da América do Sul, em Garça (SP), que está em fase de desenvolvimento. Doamos nosso acervo para a prefeitura, incluindo revistas raras, painéis de 6 metros pintados à mão e até películas originais de animações clássicas.

DBN: O que há de mais valioso no acervo da ABRADEMI?
Francisco Sato: Temos um TCC (Trabalho de conclusão de curso) de 1972 feito por estudantes da FAU-USP. Eles analisaram mangás à mão, sem recursos como xerox, e traduziram trechos para o português. O trabalho menciona autores como Osamu Tezuka e mostra como a estética japonesa já influenciava o Brasil décadas antes do boom. Também doamos material como o Ultraman original e revistas dos anos 1950 que os imigrantes traziam nas malas.

DBN: Qual é o futuro da ABRADEMI?
Francisco Sato: Já cumprimos a missão de popularizar o mangá. Agora, queremos preservar a história. O acervo em Garça está guardado, mas precisamos reabrir o museu. Quero que as novas gerações vejam como foi esta jornada até aqui da cultura pop japonesa.

Cristiane Sato sobre animes no Brasil: uma trajetória meteórica no Brasil e no mundo

DBN: Como foi a trajetória dos animes no Brasil, desde os primórdios até a explosão recente?
Cristiane Sato: Os primeiros animes chegaram ao Brasil nos anos 1960, exibidos no Cine Niterói com legendas em português. Na TV, a série Nacional Kid (1963) foi pioneira, mas ainda é um mistério como essas produções foram negociadas. Nos anos 1970, séries como Speed Racer e Kimba, o Leão Branco marcaram a TV Tupi e Record. Elas misturavam aventura, drama psicológico e uma estética diferente dos desenhos americanos, cativando crianças com roteiros mais complexos.

Cristiane explica a evolução da animação popular no Brasil.

DBN: Qual foi o grande marco da popularidade dos animes no Brasil?
Cristiane Sato: O divisor de águas foi Cavaleiros do Zodíaco (1994). A série trouxe um esquema inédito de marketing com action figures da Bandai, e o impacto foi colossal. Revistas como Heróis do Futuro recebiam cartas de amor para os personagens. Houve até casos de crianças associando descendentes japoneses a “super-heróis”, como um menino que achou que meu amigo era o Jaspion!

DBN: Como os tokusatsus (como Jaspion, Ultraman e outros) se relacionam com essa popularidade?
Cristiane Sato: Enquanto os animes tiveram um hiato nos anos 1980, os tokusatsus ocuparam espaço. Séries como Changeman e Jiraiya criaram uma nova geração de fãs. O sucesso foi tão grande que até hoje há relatos de crianças achando que japoneses “falam como o Jaspion”. Essas séries consolidaram a imagem do Japão como terra de heróis, algo que reverbera até em doramas atuais.

Cristiane descrevendo as fantasias de cosplay do Jaspion feitas no Brasil

DBN: Qual é o legado dos animes e mangás após 130 anos do Tratado de Amizade Brasil-Japão?
Cristiane Sato: O legado é a quebra de estereótipos. Antes, os japoneses eram vistos como “exóticos”; hoje, são associados a criatividade e inovação. O kawaii (de Pokémon) e estéticas como a do Demon Slayer (baseada no período Taishō) influenciam até a moda brasileira. Mas há um risco: a repetição de fórmulas. Muitas produções atuais copiam o sucesso comercial e perdem originalidade, como aconteceu com a Marvel.

DBN: Há esperança para a originalidade na cultura pop japonesa?
Cristiane Sato: Sim! O Demon Slayer (Kimetsu no Yaiba) é um exemplo: mistura o Japão histórico com narrativas frescas. Além disso, o turismo jovem no Japão prova que as novas gerações querem experienciar a cultura além da tela –visitam locais retratados em animes e descobrem o passado japonês através deles. Enquanto houver misturas criativas, como ninjas com robôs ou monstros inspirados no mar, a chama da originalidade segue acesa.

O primeiro traje de cosplay brasileiro de Cristiane, que ela mesma confeccionou.

DBN: O que ainda precisa ser reconhecido nesse legado?
Cristiane Sato: A influência subterrânea dos pioneiros. Antes da internet, fãs traduziam mangás à mão (como o TCC de 1972 da FAU-USP, que analisava Osamu Tezuka). Esses esforços mantiveram a cultura viva. Hoje, precisamos valorizar não só o sucesso comercial, mas a diversidade –desde Yaoi até J-Fashion. O Japão não é só “Pokémon ou samurai”; é um ecossistema cultural que ainda tem muito a inspirar.

(Rodrigo Meikaru, especial para o Diário Brasil Nippou)

⇒Clique aqui para acessar o link da série especial de cinco artigos sobre o 130 anos do Japão-Brasil.

 

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