ESPECIAL: Raízes que Cruzam Oceanos: Do Kasato Maru ao estrelato na TV brasileira

A jornada da atriz Bruna Aiiso e a herança dos imigrantes japoneses

No dia 17 de fevereiro de 2025, enquanto o verão paulistano carregava no ar o cheiro de chuva prestes a cair, Bruna Aiiso chegou à entrada do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil com um misto de emoção e curiosidade. A data não era aleatória: faltavam nove meses para os 130 anos do Tratado Brasil-Japão, assinado em 5 de novembro de 1895, mas ali, entre paredes que guardavam décadas de silêncio, o tempo se dobrou. Seus passos ecoaram nos corredores como tambores ancestrais, revelando histórias que o tratado nunca registrou —histórias de mulheres que costuraram futuros em tecidos gastos, de homens que trocaram o arrozal pelo café e de crianças que aprenderam a sorrir em dois idiomas.

Atriz, apresentadora e mestre de cerimônias, a nikkei de terceira geração e estrela das novelas da Rede Globo parou diante da escultura que leva o nome do local já vislumbrando uma viagem histórica. Antes, porém, fez questão de fazer vídeos para os stories de seu perfil no Instagram, pois sabia que, ao adentrar na história completa sobre a imigração japonesa no Brasil, não teria possibilidades de pausar a visita para filmar. Afinal, tamanha carga emocional e resgate histórico a fariam mergulhar nas lembranças que remetiam a seus avós. “É uma imensidão de informações e contextos que mexem demais com nosso coração”, explicou ela.

Bruna é recebida pela presidente Yamashita na entrada do museu

A visita pelo Museu foi guiada por nada menos do que a presidente da Comissão de Administração do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, Lídia Yamashita. Ela conhece como a palma da mão cada detalhe dos objetos expostos no local, condensando as explicações para uma encantada Bruna Aiiso, sempre atenta a todos os detalhes. A forma de expressar em palavras cada parte da exposição tornou a visita ainda mais especial. Bruna Aiiso, apesar de nascida em São Paulo e viver no extremo sul da cidade durante a infância e adolescência, nunca tinha tido a oportunidade de visitar o Museu.

Localizado no coração do bairro da Liberdade, reduto da cultura japonesa em São Paulo, o local abriga centenas de itens que narram a saga dos 781 primeiros imigrantes que desembarcaram no Brasil em 1908 a bordo do navio Kasato Maru. Bruna percorreu os três andares do espaço com a lentidão de quem reconhece cada fragmento como parte de sua própria genealogia.

No primeiro andar, kimonos tradicionais bordados à mão, livros, cadernos de anotações e documentos históricos sobre a liberação de entrada de imigrantes japoneses em solo brasileiro rememoraram a saga (difícil, é verdade) dos pioneiros. Já no segundo andar, ferramentas de trabalho usadas nas lavouras de café —enxadas corroídas, chapéus de palha desgastados— a conectaram à história de luta de seus antepassados. “Essas ferramentas não são só metal e madeira. São símbolos de mãos que plantaram sonhos em solo estrangeiro”, diz, emocionada.

O ápice da visita ocorreu em dois pontos estratégicos. O primeiro, ao se deparar com um diário de bordo do Kasato Maru, aberto em uma página onde um imigrante descrevia o medo de nunca mais ver o Monte Fuji, dentre outros sentimentos como: “O mar é infinito, mas minha saudade é maior”. “Isso nos faz pensar em quantas vezes minha família precisou recalibrar o coração entre dois países”, destaca. O segundo, quando pesquisou em um totem digital o nome de seu avô, a data de embarque no Japão e a chegada ao Brasil. “Imagine ficar por dois meses em uma viagem de navio, com esperança de uma vida melhor. Todos os imigrantes foram verdadeiros resilientes e com esperança de prosperar em um país cujo idioma era desconhecido, bem como os costumes. Inacreditável”, lembrou.

“Aqui Estão Nossas Vozes”: A Conexão Entre Passado e Presente

Neta de imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil no navio La Plata Maru em 28 de setembro de 1929, oriundos da província de Shizuoka (avô Aiso Takao), Bruna cresceu entre histórias de resistência. Como todo japonês que desembarcava no Brasil, seus avós paternos logo foram para o campo. Após algum tempo, vieram a São Paulo após uma leva de conterrâneos migrarem para “a cidade grande” e terem mais “sorte” nos negócios.

Situação essa que a própria Bruna viveu —décadas depois. Essa dualidade entre herança, reinvenção e resiliência permeia sua carreira. Sua estreia na televisão foi em “Bom Sucesso”, de 2019. Ela interpretou Toshi Noshimura, uma tradutora japonesa apaixonada pelo Brasil. De lá para cá, emendou em diversas atuações, como em “A Todo Vapor” (2020), “Terra e Paixão” (2023) e “Família é Tudo”. Neste mês de março, a nikkei volta às telinhas no remake de um grande clássico das novelas brasileiras de todos os tempos: “Vale Tudo”. A clássica trama de 1988 será adaptada e contará com um elenco de peso, incluindo —além de Bruna— Taís Araujo, Debora Bloch, Bella Campos e Paolla Oliveira.

Representatividade no Palco e na Tela: “Não Somos Sotaques ou Figurantes”

Inserida no mundo artístico, Bruna Aiiso é categórica ao falar sobre a importância de personagens descendentes com profundidade. Por décadas, os nikkeis foram reduzidos a estereótipos: o nerd da calculadora, a ‘exótica’ sensualizada ou o imigrante que não domina o português. São rótulos que, para ela, apagam nossa humanidade. A atriz celebra avanços recentes, mas ressalta: “Ainda há produtores que acham que ‘personagem com descendência japonesa não vende’. Venderá quando deixarem de nos tratar como nicho e nos enxergarem como parte do todo”.

Nesse sentido, ao longo da visita ao Museu, Bruna enfatizou que o aniversário do tratado não é apenas uma efeméride, mas um convite à reflexão sobre o legado vivo da imigração. “Museus como este são espaços para nos lembrar que diversidade não é moda, é raiz. Se não conhecermos nossa história, como vamos combater o racismo que ainda persiste?”. Ao final do passeio, Bruna deixou uma mensagem no livro de registros do museu: “Aos que vieram antes de nós: obrigada por plantarem as sementes que hoje nos permitem florescer”. A frase, porém, ganhou contornos concretos quando uma surpresa a aguardava na saída: a presença de seu pai, Tino Aiiso, um dos maiores incentivadores e exemplo de que trabalho árduo e persistência são alguns dos segredos para se atingir o objetivo final. Aliás, trajetória que simboliza a vida de muitos nipo-brasileiros, pois ele foi ao Japão como dekassegui, atuou por alguns anos na província de Aichi em linha de montagem e retornou ao Brasil. Durante esse período em terras japonesas, as remessas de dinheiro proporcionaram à filha Bruna um conforto nos estudos e a dedicação, ainda na adolescência, para atingir o sonho de ser atriz.

Bruna se surpreendeu com a exposição

Confira mais detalhes sobre a percepção de Bruna Aiiso sobre a imigração japonesa e detalhes de sua trajetória em um bate-papo com a redação do Diário Brasil Nippou e Portal Nippon Já:

Diário Brasil Nippou: Bruna, como foi para você conhecer o Museu Histórico da Imigração Japonesa hoje, já que nunca tinha vindo antes? O que achou da experiência? Foi emocionante?

Bruna Aiiso: Foi uma experiência incrível e, sim, muito emocionante! Confesso que fiquei surpresa: não imaginava que o museu fosse tão grandioso, com tantos detalhes da história preservados. Ver objetos originais, documentos, fotos… tudo ao vivo, pessoalmente, me deixou encantada. Percebi o quanto desconheço sobre a trajetória dos meus próprios antepassados.

O ponto alto foi encontrar o registro do meu avô nos arquivos do museu: o nome dele, o navio em que veio, as datas de saída do Japão e chegada ao Brasil… Foi de cortar o coração. Nem tenho palavras para descrever a emoção de ver parte da minha história materializada ali. [risos emocionados]

Bruna diz que ficou “arrepiada” quando encontrou o nome de seu antepassado no sistema de busca de registros de migrantes

Mas, além disso, aprendi muito hoje. A Lídia Yamashita, que me guiou, deu uma verdadeira aula! Descobri detalhes sobre a vida dura dos imigrantes: o trabalho exaustivo nas lavouras, a resiliência para construir uma vida aqui, e como contribuíram não só para a agricultura, mas para o crescimento do Brasil. Saber que nada foi fácil —que houve suor, luta e até lágrimas— me fez respeitar ainda mais essa história.

Por isso, deixo um recado: quem é descendente, venha! É uma obrigação moral conhecer suas raízes. E para todos os brasileiros, independente de origem, visitem o museu. Essa história não é só nossa, é de todo o país. Afinal, foram essas mãos japonesas que ajudaram a plantar, literalmente, o Brasil que conhecemos hoje.

DBN: Como a sua herança japonesa influenciou sua identidade? Tem algum aspecto específico da cultura japonesa que você carrega consigo no dia a dia? Por exemplo, a culinária japonesa tão popular, como se relaciona com sua vida?

Bruna Aiiso: Eu acredito que muitos aspectos da cultura japonesa estão presentes na minha vida, talvez até de uma forma que eu não consiga definir ou pontuar exatamente. Mas tem coisas que são muito fortes, como o respeito às pessoas mais velhas, o respeito ao próximo, o cuidado com o espaço do outro e a valorização da nossa ancestralidade, da nossa história. Isso tudo está muito presente em mim.

Agora, sobre a culinária, que é um legado muito forte que os japoneses trouxeram para o Brasil, eu confesso que sou mais do “time que come”! [risos]. A gente tem que cozinhar, né? Principalmente quando vai morar sozinho, aí não tem jeito, tem que aprender. Eu faço uma coisa ou outra, mas comida japonesa eu não me arrisco. Mas eu adoro comer! E, inclusive, eu cheguei a trabalhar em um restaurante japonês aqui em São Paulo, o que me deu uma proximidade maior com essa parte da culinária.

Foi uma experiência muito legal. Eu trabalhei em um restaurante japonês muito famoso, um dos pioneiros nesse estilo mais sofisticado. Isso foi lá em 2006/2007, quando ainda não tinha tanta opção de restaurantes japoneses como hoje. Eu era hostess, atendente, recepcionava os clientes e cuidava da lista de espera das mesas. Nos dias mais corridos, eu também ajudava a servir as mesas e a pegar os pedidos. Foi assim que eu aprendi os nomes de todos os pratos e me apaixonei pelos pratos quentes: robatayaki, karê, ramen… Eu gosto muito de tudo!

E, naquela época, eu já conciliava esse trabalho com a carreira artística. Aliás, tem uma curiosidade engraçada sobre mim: eu tenho duas carteiras de trabalho porque a primeira encheu de tanto carimbo! Antes de conseguir viver só da profissão artística, eu trabalhei de muita coisa: fui vendedora em shopping, auxiliar administrativa… A profissão artística é muito difícil, né? Até você conseguir se estabilizar, é um longo processo.

Mas, enfim, acho que tudo isso faz parte da minha história. A culinária japonesa, o respeito aos mais velhos, a valorização das raízes… tudo isso está em mim, e eu carrego com muito orgulho.

Bruna sorri durante entrevista no museu

DBN: Como você vê a representação de descendentes japoneses na indústria do entretenimento brasileiro? Você sente que há espaço para mais histórias que celebrem essa herança?

Bruna Aiiso: Esse assunto, na verdade, não é só um tema para mim, é um propósito de vida. Cheguei à conclusão de que meu propósito é fomentar, abrir caminhos e incentivar a inserção de artistas asiáticos no mercado de trabalho artístico no Brasil. E hoje, posso dizer que evoluímos muito. Se a gente olhar para o cenário de dez anos atrás, quase não víamos atores, artistas ou músicos descendentes no entretenimento brasileiro. Hoje em dia, a gente vê muito mais. Se você liga uma novela, vê um ator; se vai ao cinema, vê outra participação.

Mas o meu trabalho hoje é para outra coisa: melhorar a qualidade dessas participações. Em que sentido? Principalmente no sentido da relevância deles, da importância e do tamanho mesmo. Porque eu bato muito na tecla de que não adianta você ter um ator numa produção —seja filme, série ou novela— se você não dá a importância que ele merece. Então, eu acho que ainda falta muito: espaços um pouco maiores, personagens mais importantes, protagonistas, personagens que realmente tenham uma função na trama, sabe? Que o público grave, que o público lembre, que o público reconheça na rua.

Para isso, a gente precisa que esses profissionais apareçam mais —é o que a gente chama de tempo de tela. Eles precisam aparecer mais, ter mais falas, ter mais relevância. Então, hoje em dia, o meu trabalho é para isso. Antigamente, a gente vivia muito na indústria do cinema e das novelas da TV com papéis voltados que eram muito estereotipados. Hoje em dia, já não temos tanto aquele papel do japonês que fala com sotaque carregado. Já vejo isso como uma evolução, uma grande vitória.

Hoje, temos uma conscientização maior. Porque, assim, o nome dos meus projetos é todo em cima de afirmar e reafirmar que nós somos brasileiros também. Então, o que eu quero é que as pessoas entendam que a nossa história não é só sobre sotaques ou estereótipos. É sobre personagens reais, com profundidade, que representam a diversidade do Brasil. E é nisso que eu estou trabalhando: para que a gente tenha mais espaço, mais voz e mais histórias que celebrem essa herança.

DBN: Você já interpretou personagens que refletem a cultura japonesa. Como essa cultura influencia na construção dos seus personagens, mesmo quando eles não são necessariamente japoneses? Isso traz alguma influência na hora de você montar o personagem?

Bruna Aiiso: Eu acho que traz influência, sim, porque eu não tenho como fugir disso. Isso é quem eu sou. Quando qualquer pessoa olha para mim, a primeira coisa que ela vê são os meus traços, a minha ascendência. Ela já pressupõe muitas coisas sobre mim, e eu não tenho como me desvencilhar disso, porque essa é a minha essência.

Por exemplo, no caso da Toshi, minha primeira personagem em uma novela, em “Bom Sucesso”, ela era de fato uma japonesa. A história dela era de uma mulher que vinha para o Brasil trabalhar como tradutora em uma editora de livros, se apaixonava pelo país e decidia ficar aqui. Para essa personagem, eu obviamente tive que estudar muito. Precisei aprender um pouco do idioma japonês e, mais do que isso, precisei aprender a falar com sotaque —respeitando o sotaque verdadeiro, original. Também trabalhei os trejeitos, a postura da mulher japonesa, que foi muito importante para construir a Toshi.

Já em outros personagens, mesmo quando não há uma conexão direta com a cultura japonesa, eu acabo trazendo um pouco disso porque faz parte de mim. Não tem como eu me desvencilhar. Por exemplo, na minha última personagem na novela das nove, a Doutora Laurita, ela era uma médica psiquiatra. A novela se passava em uma cidade fictícia, Nova Primavera, mas era baseada em Dourados, no Mato Grosso do Sul, uma cidade com muitos descendentes japoneses. Então, tudo tinha uma razão de ser. A escalação da Doutora Laurita, inclusive, teve fundamentos nisso. Ela foi escolhida porque, na cidade de Dourados, que era a referência para a novela, havia muitos descendentes.

Então, sim, a cultura japonesa influencia, mesmo que de forma indireta. É algo que está em mim, e isso acaba transbordando para os personagens que eu interpreto.

Presidente Yamashita explica documento dos 130 anos das relações diplomáticas entre o Japão e o Brasil para Bruna

DBN: Bruna, neste ano comemoramos os 130 anos do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre Brasil e Japão. Hoje, aqui no museu, você conseguiu ter uma noção de como foi essa história — inclusive viu o documento original. Como você vê o legado cultural japonês no Brasil após esses 130 anos? Como avalia essa questão do intercâmbio cultural e social?

Bruna Aiiso: Eu sinto um orgulho enorme. Quando a gente olha para a sociedade brasileira hoje, é impossível não perceber o quanto o Brasil deve aos imigrantes japoneses. Hoje, por exemplo, eu descobri que o caqui é japonês! Se você chegar no Japão e pedir um caqui, eles vão te dar um caqui. [risos] Então, tem todo um legado cultural, gastronômico, que me faz sentir orgulhosa e, ao mesmo tempo, grata. Grata por todos os japoneses que trabalharam duro, que tiveram uma vida que não foi fácil, especialmente no começo.

Hoje em dia, muitos brasileiros veem os descendentes japoneses como um “povo que deu certo”. Eu ouço muito isso. Mas a gente também precisa lembrar como foi o começo: não foi fácil. Foi muito trabalho, só trabalho. E, quando você faz uma visita aqui no museu, acompanha essa linha do tempo e vê como tudo aconteceu, você entende muita coisa. Então, o que eu sinto, principalmente, é orgulho.

DBN: E o que você diria para os jovens descendentes japoneses que estão buscando seu espaço no Brasil, seja nas artes ou em outras áreas?

Bruna Aiiso: É muito difícil, porque foi muito difícil para mim também. Eu não gosto de incentivar ninguém de forma irreal, mas gosto de dizer como as coisas realmente são. O mercado artístico no Brasil para descendentes ainda é muito limitado. Então, eu acho importante que todo mundo que nasce artista —porque eu acredito que artista nasce artista— siga sua vocação, mas saiba que não vai ser fácil. O coração é o que manda. Se você tem aquilo como propósito, eu incentivo que siga.

Eu tenho muitos colegas que desistiram da profissão no meio do caminho e optaram por outras carreiras. Mas o que eu costumo dizer é que quem nasceu artista dificilmente vai ser feliz fazendo outra coisa. Então, eu incentivo sim, mas sempre alertando: esteja preparado para os desafios.

(Rodrigo Meikaru, especial para o Diário Brasil Nippou e Nippon Já)

⇒Clique aqui para acessar o link da série especial de cinco artigos sobre o 130 anos do Japão-Brasil.

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