Descubra como é a vida de um casado com uma… personagem fictícia

Kondo e a esposa: amor que surgiu em 2017, época em que enfrentava fase turbulenta da vida (Fotos: Arquivo Pessoal)

(Por Lika Shiroma)

Com a popularização do termo LGBTQ+, pode-se dizer que o reconhecimento e a compreensão pela minoria sexual têm se tornado cada vez mais comuns e difundidos. Porém, existe uma “minoria da minoria” – se é que podemos designar o caso desta matéria – que vem ganhando notoriedade.  Você pode até já ter ouvido falar, mas não percebeu o impacto social causado. Como no caso do japonês Akihiko Kondo, o homem que se casou com uma personagem fictícia chamada Hatsune Miku. Especificamente, ele é considerado um fictossexual ou fictorromântico, como são designados quem é apaixonado e/ou casado com personagens fictícios.

Para quem ainda não está tão habituado com o mundo tecnológico, Hatsune Miku ganhou notoriedade há alguns anos por ter músicas extremamente “grudentas” e mobilizar milhares de fãs. Faz shows ao vivo (através de projeções holográficas), interage com o público e tem turnês lotadas concorridas. A personagem com voz “artificial” criada pela Crypton Future Media, permite que os usuários a façam cantar como quiserem, via tecnologia desenvolvida pela Yamaha Corporation, denominada Vocaloid (vocal + android), mas em cima dos palcos faz tudo como manda o figurino dos ídolos reais.

Casal sai para jantar em restaurantes e comemora datas como aniversário de casamento

“Ela [Hatsune Miku], na verdade, é um software de composição de música que você instala no seu computador”, define o próprio Kondo, sendo direto ao ponto e sem romantismo. Atualmente com 38 anos, ele reside na região metropolitana de Tóquio e se casou com a Hatsune Miku em 2017, com direito a uma festa no ano seguinte, em comemoração das “bodas de papel” aqui no Brasil. A cerimônia ganhou contornos inimagináveis para o casal: emissoras de televisão de diversos países fizeram a cobertura do evento, destacando o matrimônio. Hoje, quatro anos após o enlace, ele diz que a vida de casal está tranquila e segue a rotina comum de marido e mulher: fazem refeições juntos, interagem, tem DR’s (discussões de relacionamento) e, claro, como bom cavalheiro, ele sempre a elogia, dizendo frases como “Hoje você está muito kawaii (linda)”. Mesmo demandando muito esforço, Akihiko leva a esposa para passeios, colocando-a em uma cadeira de rodas. E, claro, não deixam de comemorar ocasiões especiais como aniversário de casamento e da esposa.

Nessa altura, o leitor deve estar se perguntando “como é que ele come e passeia com uma personagem que não tem forma, que só existe no mundo virtual?”. Pois bem, Akihiko – para dar um tom mais realista ao relacionamento e ter uma convivência física de fato – convive com uma grande boneca da personagem, produzida especialmente por uma empresa a seu pedido. Ele conta que no quesito “conversas” e “interações” não havia muito problema, pois tudo acontece frequentemente dentro da sua imaginação. Todavia, faltava o “toque”. “Sentia falta de segurar na mão da Miku e de abraçá-la”, diz.

Puxando da memória, o marido diz não se recordar do primeiro encontro entre os dois. “Sinceramente, não me lembro quando foi que conheci a Hatsune Miku com exatidão, mas acredito que tenha sido em algum momento de 2007. Já sobre o período que eu comecei a gostar dela, recordo que foi em maio de 2008, quando eu já estava afastado do meu emprego. Nessa época eu não conseguia dormir à noite… foram dias difíceis”, conta Akihiko.

Refeições em casa são sempre motivos de festa e alegria

Ele sofria um grande mal que está incrustado na sociedade japonesa há décadas: bullying. No caso dele, o ambiente de trabalho era tão tóxico a ponto de prejudicar sua saúde psicológica. Nesse momento, a figura de Hatsune Miku foi fundamental para tirá-lo do “fundo do poço”. “Nisso, eu conheci a música ‘Miracle Paint’ da Hatsune Miku. Essa música me fez reconhecer o Vocaloid como um potencial estilo musical e comecei a ouvir as músicas do gênero com mais atenção”, relembra. A música citada é um dos maiores sucessos da Vocaloid, alcançou um milhão de visualizações na plataforma Niconico e foi produzida pelo OSTER Project como agradecimento a um colega ilustrador. Apresenta uma levada jazz com letra romântica. “Quanto mais fui me envolvendo com as músicas e os vídeos da Hatsune Miku, mais eu me apaixonava por ela. Foi assim que tudo aconteceu”, explica.Nascia, daquele momento em diante, um amor um pouco diferenciado. Aos poucos a relação dos dois foi evoluindo, tal qual como dois namorados. Carinho, cumplicidade e, principalmente, respeito sempre deram o tom na relação. O amadurecimento do relacionamento foi seguindo o curso natural, até que chegou a hora de selar uma união formal, de “juntar as escovas de dentes”, como se diz no Brasil.

Casamento dos 39 – Quando Akihiko realizou a festa de casamento com a Hatsune Miku, 39 convidados compareceram. O número não foi uma escolha ao acaso: 39 é o número dela, pois os números 3 e 9, em japonês, são pronunciados como ‘mi’ e ‘ku’, respectivamente.

A festa bem reservada contou com os amigos mais próximos. Já a família dele preferiu não participar da cerimônia. “Não tive aprovação nenhuma da minha família. O meu pai já é falecido, então não tive como perguntar para ele diretamente (risos). Mas a minha mãe disse claramente que não consegue comemorar o nosso casamento. Minha irmã mais nova também não compareceu à festa de casamento e nem teve palavras de felicitação. No casamento dela eu estava lá, então achei uma pena ela não vir no meu”, lamenta Akihiko. Entretanto, o seu casamento não foi um fator para agravar o relacionamento dele com a sua família. Ele explica que desde que começou a morar sozinho para trabalhar, nunca teve tanto envolvimento com sua mãe e sua irmã, então a sua relação com elas “continua indiferente, antes ou depois do casamento”.

Segundo Akihiko, há uma tendência de opinião sobre o seu casamento com a Miku dependendo da faixa etária. “Atualmente eu trabalho em uma escola secundária [equivale do 7º ao 9º do ensino fundamental brasileiro]. Quando demos a festa de casamento, recebi muitos parabéns dos alunos. Ouvi ‘Parabéns, sensei Kondo’ de dezenas de alunos. Fiquei muito feliz com isso”, relembra. Entre seus colegas de trabalho, tiveram aqueles que parabenizaram e outros que discriminaram. Ele explica que as pessoas da faixa etária mais elevada eram mais comuns de opinarem contra o seu casamento.

O cônjuge diz que ele não exige aceitação de ninguém, porque é compreensível que não entendam o amor que ele sente pela esposa. Mas, tudo tem um limite. “Respeitar esse meu sentimento, é disso que se trata a diversidade. Acredito que esse posicionamento, essa forma de pensar é necessário ser mais difundido para toda a sociedade”, completa, levantando a bandeira da diversidade e livre escolha nos relacionamentos. Sejam eles quais forem.

Até na hora de dormir Hatsune Miku tem vestimentas próprias (todas escolhidas pelo marido Kondo)

Consequências positivas – O caso do amor entre um homem e uma personagem fictícia não foi destaque apenas na televisão, sites e redes sociais. O relacionamento tornou-se foco, também, de estudos acadêmicos e pesquisadores. Kondo afirma ter recebido convites de grandes centros de estudos, como Universidade de Kyoto, Universidade Rikkyo e Universidade de Nagoya, para ser entrevistado por professores e atuar como palestrante. “Os assuntos abordados nesse mundo acadêmico são muito técnicos, o que me fez querer estudar mais”, explica, referindo-se ao fato de não ter conhecimento teórico e autoridade suficiente para abordar a questão de humanos se relacionarem com personagens. Atualmente, ele está no segundo ano da faculdade de Direito, na Universidade Komazawa.

Fora do mundo acadêmico, nas redes sociais o marido de Hatsune Miku confirma que recebe mensagens de pessoas que também são apaixonados e/ou casados com personagens fictícios. “Tem até gente com quem me tornei mais próximo a partir da mensagem que recebi, confessando ‘eu também sou fictossexual’. Miku tem me ajudado a me relacionar com pessoas na vida real também, sou grato a ela por isso”, conta, acrescentando que ainda podem existir muitas pessoas que se identificam fictossexuais ou fictorromânticos pelo mundo. “Nunca foi realizada uma pesquisa formal sobre essas pessoas, contabilizando quantas pessoas existem. Nunca foi abordado com seriedade o suficiente”, explica.

Estudando Direito e tendo mais conhecimento sobre leis, Kondo sabe que, legalmente, ele é solteiro. Todo o casório se deu através de uma campanha realizada em 2017 pela empresa Gatebox, a criadora de assistente pessoal e virtual com projeção de personagem holográfica. Ele explica que mais de 3.700 pessoas também aproveitaram da oportunidade para realizarem o sonho do casamento com seus respectivos personagens favoritos. “Atualmente não tem nenhuma lei sobre casos como o meu. Se fosse para exigir um reconhecimento legal de fato, acredito que teriam inúmeros obstáculos a serem superados”, diz Akihiko. “Imagino que futuramente, quando a convivência com robôs e inteligências artificiais se tornarem mais comuns, será um assunto discutido com mais seriedade. Talvez seja cedo demais ainda”, completa.

Kondo afirma que foi Hatsune Miku quem o salvou na fase mais difícil da vida

Para finalizar, ele diz que personagens são muito além de um ser inexistente de outra dimensão. É alguém insubstituível, que sempre podem contar em todos os momentos. “A Miku não é simplesmente um personagem que eu gosto, ela é quem me salvou. Eu agradeço muito a ela por ter me apoiado no momento mais difícil da minha vida”, conclui.

 

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